Precisamos tirar o foco do mosquito e centrar nas condições e situações que levam a ter criadouros
“Guerra ao mosquito”. Nas últimas semanas, as manchetes sobre a epidemia do zika vírus, transmitido pelo Aedes aegypti, abusaram da expressão e repercutiram à exaustão a declaração do ministro da Saúde, Marcelo Castro, de que o país vem perdendo feio a “batalha”. O titular da pasta, a presidente Dilma Rousseff e outras autoridades vêm reforçando a mensagem de que a população brasileira precisa se unir no “combate” para sair vitoriosa. A novidade da transmissão do zika no Brasil pelo mesmo mosquito que já transmitia dengue e chikungunya, acrescida da tragédia dos milhares de casos suspeitos de microcefalia em bebês parece não ter sido suficiente para que o governo brasileiro repensasse a estratégia de combate que vem sendo adotada, sem sucesso, há 40 anos para o combate ao Aedes aegypti. É o que alerta a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) como resultado do trabalho de cinco grupos de trabalho de pesquisadores que lançaram nesta terça-feira, 2, a ‘Nota Técnica sobre microcefalia e doenças vetoriais relacionadas ao Aedes aegypti: os perigos das abordagens com larvicidas e fumacê’. Nessa entrevista, Lia Giraldo, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, pesquisadora aposentada do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz) e membro do GT Saúde e Ambiente da Abrasco explica os fundamentos da crítica ao paradigma químico de controle do vetor e porque ele é ineficaz e perigoso para a saúde humana e ambiental.
Por que essa linha de ação é tão poderosa e prevalente?
Ela deriva da forma hegemônica de se pensar a causalidade de uma doença sem levar em conta o contexto. Esse modelo de causalidade é do começo do século 20. Nele, busca-se o agente etiológico – a causa única – e traça-se uma relação linear com a doença. Isso leva a uma ação. Notadamente, ao desenvolvimento de uma tecnologia específica para combater aquele agente. É, de fato, um raciocínio que ainda prevalece na saúde pública, está presente nas agências internacionais e, obviamente, interessa ao capital. Então, quando você me pergunta o porquê dessa linha de ação ser tão poderosa, me parece que é por uma conjunção de interesses. Porque ela interessa tanto à agenda do mercado quanto à agenda política. Aos gestores têm interessado o caminho mais curto. Ao contrário, quando você pensa no contexto há que pensar em medidas mais complexas de médio e longo prazos. E isso não cabe no curto espaço de tempo de uma gestão. Demanda planejamento e continuidade. Exige ações integradas, intersetoriais, que abarquem todos os aspectos presentes na produção do fenômeno.
Foi sempre assim?
Já houve momentos em que a visão foi mais ampla, a partir de uma perspectiva de intervenção no ambiente. Se remontarmos à experiência de John Snow na Londres do século 19, veremos que mesmo sem conhecer o agente etiológico da cólera, ele compreendeu que aquela doença estava se espalhando devido às péssimas condições em que vivia grande parte da população. Isso levou ao saneamento de Londres. No caso da febre amarela [início do século 20], a epidemia levou a reformas que envolveram urbanização das cidades. Houve grande preocupação com o saneamento. São histórias que revelam que a ação no contexto, não só na causa, possibilita a solução sustentável do problema. Mas com o desenvolvimento tecnológico, com a perspectiva de ir por um caminho mais curto, buscar a vacina ou o antibiótico, o quadro mais amplo foi deixado de lado. A questão é que o saneamento e a política urbana são estruturantes. Um bom exemplo é a tuberculose. Trata-se de uma doença que tem vacina e antibiótico. Que bom. Foi extinta? Longe disso. Continua ocorrendo, e cada vez em formas mais graves. Isso acontece porque nem a vacina, nem o antibiótico sozinhos deram conta das condições em que vivem as pessoas. Esse raciocínio pode ser ampliado para as doenças crônicas, as doenças cardiovasculares, que não podem ser resolvidas pelo modelo causalista: achar um agente etiológico que precisa ser atacado. São doenças complexas.
Esse paradigma, portanto, não é novidade?
Isso é muito conhecido e já bastante discutido. Mas, apesar de todas as evidências, a ação prática se reporta a uma forma de raciocínio que entra na economia da causalidade praticamente única. Parece que todos os gestores emburrecem quando estão em uma situação como essa da epidemia. Existe uma pressão em dar uma resposta de força, por assim dizer, quase militar. Busca-se o inimigo. É preciso atacar o inimigo. Esse tipo de linguagem não ajuda o enfrentamento do problema.
Quando isso começou a aparecer no Brasil dessa forma?
Em 1996, o equivocado Programa de Erradicação do Aedes aegypt, tinha na sua primeira versão um forte componente de saneamento. Mas, logo em seguida, o Ministério da Saúde fez uma segunda versão e eliminou o componente de saneamento. Em 2002, eles viram que essa meta de eliminar o mosquito não era factível e mudaram o nome de ‘Erradicação’ para Plano Nacional de Controle da Dengue, vigente até hoje. O saneamento foi esquecido. Se esse componente de saneamento tivesse sido mantido e os sucessivos governos tivessem avançado na sua implementação hoje nós teríamos outra realidade. O que acontece é a descontinuidade das políticas, a falta de sustentação, o personalismo que quer esgotar sua ação no espaço de uma gestão.
Quais são as evidências que sustentam a ineficácia do paradigma químico para o controle do Aedes aegypti usado para dengue e repetido, agora, para a zika?
A dengue no Brasil deixou de ser apenas epidêmica. É endêmica. Ou seja, antes, quando era epidêmica, a cada quatro ou cinco anos tínhamos marcadamente algumas epidemias. Aí foram entrando mais sorotipos e passamos a ter mais vírus circulando. Hoje são quatro. Por isso, o Brasil se tornou endêmico, de fins de 1990 em diante. Fora isso, a dengue sempre foi considerada uma doença benigna pela OMS [Organização Mundial da Saúde]. Desde o século 18 temos dengue. Só a partir das décadas de 1960 e 1970 é que começa a haver mortalidade. E isso coincide com a entrada do uso dos produtos químicos no controle vetorial. Antes da entrada dos venenos, dengue não matava.
Por isso a importância de chamar atenção para o uso contínuo dos larvicidas e fumacês?
A gente está chamando atenção para as disfunções do uso do veneno. Os problemas de saúde decorrentes do uso do veneno, que ninguém estuda. Esses venenos foram introduzidos em 1968 para a dengue. Esse modelo não impediu a dispersão do mosquito no território nacional. E isso porque o mosquito se tornou resistente. Não impediu que o Brasil se tornasse endêmico. E não impediu que uma doença que a OMS considerava benigna alcançasse o grau de mortalidade que vemos hoje. Porque a doença se tornou maligna? É só porque tem mais sorotipos circulando ou tem mais coisa? É preciso que o Ministério da Saúde responda essas perguntas. Nossa preocupação é centrar a crítica no modelo do mosquito. Eles dizem com todas as letras que o mosquito é o elo vulnerável da cadeia de transmissão. Mas o elo vulnerável somos nós. O mosquito vem demonstrando bastante resistência a essa abordagem há 40 anos.
Sobre vulnerabilidade da população, a Nota Técnica levanta uma importante discussão sobre a água. É comum nas campanhas de combate à dengue alertas como “não deixe água parada”, levando a entender que é um descuido da população, até porque os exemplos mais recorrentes são vasos de plantas pneus. Mas vocês alertam que a falta de saneamento combinada à intermitência da água leva a população mais pobre a estocar água. E também denunciam a contaminação da água de beber da população nordestina há décadas por larvicidas como o Temephós. Por que a potabilidade da água é importante para o controle do Aedes?
O Temephós foi introduzido em 1968 no Nordeste por recomendação das Forças Armadas americanas. Isso está documentado. Então, a população nordestina está tomando água com larvicida há mais de 50 anos. Isso nunca foi estudado, avaliado, nada. Ninguém diz que a água não é mais potável. Se a água tem larva, ela não é mais potável, certo? Pois é, se tem larvicida também não. Agora, recentemente, o coordenador do Programa Nacional do Controle da Dengue recomendou que fosse usado larvicida nos carros-pipa. Já que as pessoas são desobedientes e não condicionam corretamente a água, então vamos já botar no carro-pipa. Isso é um absurdo. No Nordeste, nós vivemos um processo contínuo de racionamento de água. E justamente a população mais pobre não estoca água porque quer, mas porque a água não chega. É um processo de intermitência no abastecimento, conjugado com falta de saneamento que leva a população a pôr água nos baldinhos. Se o foco não fosse o mosquito, mas as condições que possibilitam o surgimento de criadouros, o conceito de potabilidade seria fundamental para recuperar nas pessoas a consciência da proteção da água. Para que as pessoas cuidem da água, impeçam que ela se contamine. Permitiria o envolvimento mais proativo da população a partir de algo que é caro a todos nós. Água é vida. Não pode ser poluída de jeito nenhum. Durante muito tempo, quando as doenças diarreicas prevaleciam e matavam muitas crianças, todo o discurso da Saúde Pública era “precisamos da água potável”. Precisamos proteger a água. O conceito de potabilidade é muito importante na Saúde Pública. Tanto que quem controla a qualidade da água é o Ministério da Saúde. Só que o próprio Ministério da Saúde envenena a água da população brasileira. Ele permite que larvicidas sejam colocados na água.
O tema da água leva outra questão que é a recorrente responsabilização do indivíduo e das famílias quando o assunto é epidemia causada por Aedes. As autoridades têm reforçado a participação popular para “vencer a guerra”.
É um discurso importante, mas [o foco na responsabilidade de indivíduos e famílias] nunca pode ser maior do que a responsabilidade do Estado com a questão ambiental e com as desigualdades sociais. Onde está a maior parte dos casos de dengue? Onde estão os casos de microcefalia? É só olhar o mapa. O Programa de Dengue precisa passar por uma grande revisão. E tem que se assumir de uma vez por todas que as doenças [dengue, chikungunya e zika] não são democráticas. Há uma iniquidade na distribuição. As pessoas mais vulneráveis são as mais pobres, que estão em ambientes sem saneamento, mais expostas à intermitência da água.
Vocês falam sobre a insustentabilidade do modelo químico em relação ao ciclo de resistência. Pode explicar?
É bem evidente a resistência dos insetos aos produtos. O mosquito é muito robusto do ponto de vista biológico. Ele tem uma estratégia de sobrevivência: a ovo deposição. Ele ovo deposita em tudo quanto é lugar. Não é só na água limpa, como se propagandeia. É também nos telhados, nas calhas, nos pneus, tampinhas, folhas. Se ele tem um hotel cinco estrelas disponível, ele vai dar a preferência e depositar mais ovos ali. São ovos que ficam encistados no ambiente durante muito tempo. Passa tempo, vem uma água e o ovo eclode. Nesse processo de reprodução tão acelerado, ele faz mutações. E uma delas é a defesa contra o veneno. Então ele se torna resistente. Com os agrotóxicos usados na agricultura acontece também. A praga fica resistente. Ou aplica em maior concentração, ou muda ou associa a outro veneno e assim aumenta a toxicidade. Para a bactéria, fungo, bicho-alvo. Mas também para humanos que estão expostos. Não tem fim.
Dessa forma potencializa-se um desequilíbrio ecológico?
Você mata os predadores naturais, causando desequilíbrio ecológico. Mata passarinho, sapo, lagartixa, aranha, outros mosquitos que competem [com o Aedes]. Os agentes de endemias mais antigos que aplicam os venenos sabem muito bem disso. O que a gente está chamando atenção é da insustentabilidade desse modelo. Seja por sua baixa eficácia em relação ao seu foco, que seria eliminar ou diminuir a quantidade de mosquito, e ainda expõe a população a situações de risco que não são sequer avaliadas. Ninguém avalia. Do ponto de vista precaucionário, a regra é não ter precaução nenhuma.
O que é o princípio da precaução?
O princípio da precaução nasce quando, na década de 1960, as empresas mandavam navios jogar produtos tóxicos no mar, achando que diluindo no mar não ia acontecer nada. Os ambientalistas começaram a denunciar essa poluição deliberada dos mares e as empresas responderam: “então prova!”. Prova que esses tóxicos estão causando danos na natureza. Os ambientalistas viraram o jogo e respondem: “prova que não está”. É a mesma dificuldade. É o poluidor que tem que provar que não está poluindo. Chama-se inversão do ônus da prova. Porque uma coisa é você ter evidências em estudos experimentais, no laboratório, mostrando que os peixes, as algas, as células humanas sofrem problemas, alterações quando expostos a esses produtos. Outra coisa é quando você está na natureza e trabalha com populações. Fica consideravelmente mais difícil. Então quando você tem evidências científicas e estudos experimentais ou moleculares ou ensaios in vitro de que o produto é tóxico, não precisa esperar a prova do dano na população ou na natureza para tomar medidas cautelares de precaução. Por isso o termo: princípio a precaução. Na Europa, esse princípio rege normas. É um princípio importante para quem atua na Saúde Pública, que tem como missão primordial a prevenção e a proteção da saúde. Só que a Saúde Pública tem a prerrogativa de usar produtos proibidos. Como o DDT. Todo mundo sabe que ele tem efeitos orgânicos persistentes. Mesmo assim, por muito tempo, a OMS reintroduziu o DDT no controle de malária na África sob a alegação de que é mais barato. De que os países são pobres e não têm dinheiro para comprar outros produtos.
É a mesma situação do Malathion?
No caso do Malathion não é mais princípio da precaução. Todos os estudos já mostraram que ele é potencialmente cancerígeno para humanos. E esse acúmulo de informações foi tão grande que a IARC reconheceu essa evidência. Queremos mostrar que, apesar de ser um cancerígeno, o Ministério da Saúde continua prescrevendo. Queremos mostrar que esse e outros produtos químicos são utilizados em uma concentração altíssima e podem provocar, por exemplo, distúrbios neurológicos que não são sequer aventados. Aí você pode dizer que a população tem Guillen-Barré por causa do vírus quando pode ser por causa do veneno.
Porque no Nordeste e no Brasil está diferente?
O que de diferente aconteceu no Nordeste em 2014? A gente fez algumas colocações. Uma delas é a entrada do larvicida novo. O próprio Ministério da Saúde em uma Nota Técnica descreve seu mecanismo de ação. Ele é juvenóide, o que significa dizer que age por alteração no modelo esquelético no processo de desenvolvimento da larva. Provoca má-formação. Tem alguém fazendo algum estudo de biologia molecular para entender as alterações no DNA afetado? Será que poderia ter correspondência ao sítio do DNA humano do ponto de vista dessas má-formações? Não sabemos. Podemos ter um conjunto de condições que potencializaram e criaram uma situação tão diferenciada no Brasil que essa epidemia eclodiu desse jeito. São perguntas. E a nossa obrigação como cientista é fazer perguntas.
As conclusões a que o Ministério chegou em relação a zika e microcefalia seguem que linha de pensamento?
Não foge do modelo. Como foi imputado a microcefalia ao zika e imputado que o Aedes transmite o zika, foi feita essa conexão e, em função disso, o que o governo tem à mão? O modelo de controle vetorial da dengue. Mas o Ministério da Saúde tomou uma decisão. Construiu essa hipótese, acreditou nela. Só que o remédio que eles estão prescrevendo é a mesmice que não evitou nenhuma epidemia de dengue. O problema é o mosquito. Se não resolveram o problema do mosquito para a dengue, como é que, agora, o modelo vai dar certo para o zika? Foi feita a conexão entre Aedes, zika e microcefalia, mas ainda há dúvidas em relação a isso. Até agora os entomologistas não fizeram estudos de competência vetorial do Aedes para o zika no contexto brasileiro. Sabe-se que pode transmitir, tudo bem, mas no nosso contexto ninguém sabe ainda como isso aconteceu. Segundo, não tivemos uma sorologia e não soubemos quem de fato teve ou não teve zika. E entre a população que teve [zika], as gestantes que tiveram. E também quantas crianças cujas mães tiveram zika foram infectadas ou não. Para chegar a alguma conclusão, tem que fazer um quadrinho que é assim: mãe infectada x mãe não infectada; criança infectada x criança não infectada; e das crianças infectadas, a distinção entre as que tiveram microcefalia e as que não tiveram microcefalia. Isso se chama estudo de caso controle. Só que tem que ser feito com o passado. Só vão fazer no futuro. Mas não temos a informação mais fundamental, que é quem foi infectado e quem não foi entre as gestantes. Não se sabe. Então, quando você pega um caso de uma mãe com zika que gerou uma criança com microcefalia, isso é um dado. Não é suficiente para fazer essa relação. É um caso. Tem, é claro, uma coincidência. Algo diferente. Provavelmente a hipótese viral é grande. Isso tem que ser levado em consideração. Mas será que só o vírus? Porque em outros países que tiveram epidemia isso não foi suficiente.
‘Desenvolvimento Tecnológico, Educação e Pesquisa’ é um dos três eixos no Plano Nacional de Enfrentamento da Microcefalia. Na nota vocês defendem mais financiamento e incentivo para pesquisas que estudem essas relações entre o uso de produtos químicos e as consequências para a saúde humana e ambiental. O foco do governo, contudo, parece ser o desenvolvimento de tecnologias. Como avaliou isso?
Essa é a novidade. Quando você fala em vírus vem o apelo da indústria e dos virologistas, da produção da vacina, da biotecnologia, até do mosquito transgênico. Eu fui numa reunião da Fundação de Apoio à Pesquisa de Pernambuco. Chegando lá havia um grupo de desenvolvimentistas de software para fazer vigilância epidemiológica em tempo real, um grupo interessado em fazer os estudos epidemiológicos, e outro grupo que defendia trocar o larvicida químico por larvicida biológico. Nada disso muda o modelo. Eu falei que era estranho que na reunião não houvesse nenhum entomologista, especialmente porque em Pernambuco temos ótimos entomologistas. Também não havia nenhum engenheiro sanitário. Porque se é para falar em tecnologias para a solução do problema, onde estão os engenheiros sanitaristas para propor saneamentos com tecnologias adaptadas às situações em que a densidade ocupacional é muito alta? Em morros, em alagados? Isso é tecnologia também. Mas o apelo é para as biotecnologistas. É a visão hegemônica de que esse conhecimento hiper-especializado é que é ciência. Então, mais uma vez, diante desta tragédia, não se pensa de forma complexa, pela determinação social do problema, mas, ao contrário, só se pensa no pequeno e no umbigo. E aí você vê as dificuldades em vingar um pensamento estratégico.
Essa visão é unânime?
A Opas [Organização Pan-Americana da Saúde] já está falando que é uma pandemia que vai se alastrar pelas Américas e a tecnologia é a única solução. Já preparando as pessoas para se conformarem com a desgraça. Tem um fatalismo embutido nesse discurso que é ideológico. Faz as pessoas aceitarem de alguma maneira ser pobres, estarem expostas, gestarem bebês com microcefalia. E o que se vai fazer? A culpa é do mosquito. Então guerra ao mosquito. O modelo é bem montado e serve aos interesses da indústria e daqueles que se locupletam com isso. Ninguém é contra o desenvolvimento tecnológico. Somos contra o reducionismo. Somos contra colocar as coisas nesse nível em que nunca se declara a responsabilidade do Estado na perpetuação das condições que propiciam a vulnerabilidade. Repito: ninguém é contra a vacina. Mas a vacina não é panaceia. Está aí o exemplo da tuberculose. A vacina é uma solução importante dentro de um conjunto de outras soluções. É como na discussão sobre a matriz energética. A solução não é apenas a energia solar ou apenas a energia eólica. É a combinação de tudo em movimento junto.
Porque as vozes críticas a essa abordagem não vêm recebendo a devida atenção? Isso se deve a um racha na própria saúde pública, apesar de certo consenso no campo ao redor de conceitos como determinação socioambiental da saúde?
Os pesquisadores que lutaram pelo tema da saúde do trabalhador quando viraram governo fugiram desse tema. Não queriam nem ouvir falar. O modelo político é o de financiamento das empresas. Então, quando você vira gestor, entra em “razões de Estado” que a própria razão desconhece. Saúde ambiental, saúde do trabalhador, vigilância sanitária são temas imersos em conflito de interesses. A gente vira maldito. Ninguém gosta de quem trabalha com movimento social, com os sindicatos, enfim, onde estão os problemas. De forma concreta aflorando os problemas, tentando dar transparência disso para a sociedade. E tem uma parcela que ganha suas bolsas de pesquisa em verdadeiros loteamentos internos, de amizade, etc. e que alimentam linhas de investigação que, tudo bem, têm sua importância, mas estão longe de alimentar transformação social. É um certo acomodamento: no seu mundo, no seu método, com os seus pares. Nosso discurso é contra-hegemônico. E esse discurso incomoda.
Enrevista concedida à Maira Mathias