Conferência de Abertura XVI Congresso ALAMES Stolkiner
Exposição de Abertura da ALAMES
Alicia I. Stolkiner
Em nome da Coordenação da ALAMES, gostaria de saudar de forma fraterna e solidária aqueles que estão conosco neste Congresso e agradecer profundamente o esforço feito pelos companheiros da República Dominicana para que possamos nos encontrar pessoalmente ou virtualmente em uma circunstância tão dramática e complexa como a situação global da pandemia COVID 19. Mais do que nunca, hoje, devemos fortalecer a ALAMES, essa corrente de produção de pensamento e ação, essa rede de organicidade flexível que tem sido uma influência real e efetiva no campo da saúde nos países da América Latina e que deve continuar em concertação e articulação com movimentos e forças que colocam como eixo central a defesa da vida e dos direitos efetivos de todas as pessoas e da natureza.
A Pandemia foi o evento catalítico que precipitou catastrópica o desequilíbrio de um sistema que já estava em um nível muito alto de instabilidade, refiro-me à economia mundial capitalista como ela havia acelerado em sua voracidade desde a crise dos anos 70 do século passado, com a passagem da lógica dos estados de bem-estar social para o modelo neoliberal, aprofundando a financeirização e convergindo com a queda do bloco socialista e, portanto, do mundo bipolar e da distribuição geopolítica acordada no final da Segunda Grande Guerra.
Na convicção de que não havia mais “um fantasma assombrando o mundo”, o capital afetou o trabalho e, portanto, a própria vida.
A mercantilização avançou em todas as esferas da existência humana, incluindo saúde e educação.
As políticas sociais desenvolvidas no pós-guerra, produto de lutas e mobilizações, e também da necessidade de manter a governabilidade capitalista diante da possibilidade de processos revolucionários, tornaram-se um capital aspirado para investimento financeiro e lucro.
Lembremos o título do documento orientador do Banco Mundial para as reformas neoliberais na América Latina: “Investir em Saúde”.
Este pode ser um corte temporário de média ou curta duração, porque talvez a longa duração deva ser estendida à invasão colonial da América, à institucionalização do sequestro para o comércio humano na África (aqueles milhões traficados como escravos que geraram o capital que, por sua vez, impulsionou a revolução industrial). A subjugação do Oriente. Um processo que construiu também a subalternização ou invisibilização de culturas, etnias, gêneros e diversas diversidades, inclusive os despossuídos, com os quais conseguiu produzir, em suma, uma alteridade cuja vida e morte estão subordinadas à produção e concentração de riqueza. Essa exigência subjetiva, de que haja vidas que, como diria Judith Butler, não mereçam ser lamentadas ou lamentadas, e o desprezo por elas, é uma condição subjetiva indispensável para a sustentabilidade do projeto. É por isso que, quando ocorreu a crise da dívida na Grécia, Portugal, Espanha e Itália, ele os chamou com a sigla PIGS, que em inglês significa “porcos”.
Entre essas vidas subordinadas estava o lugar atribuído a mulheres e crianças. O modelo patriarcal pré-existente foi incorporado como ferramenta de exploração do trabalho feminino invisível, visando aumentar a lucratividade, sem custo salarial, de uma parte do trabalho global de produção e reprodução da sociedade. Mas também, dentro desse núcleo que é a família, serviu como ferramenta de reprodução e naturalização na própria produção subjetiva, da transformação da diferença em desigualdade e da desigualdade em justificativa de exploração ou destruição, e também fundou um modelo de princípio de autoridade extensível ao social que por sua vez o sustentou.
A ideia moderna original, de direitos políticos e civis individuais, construiu exceções em seu nascimento. Aqueles que enunciaram tais direitos o fizeram à sua própria imagem e ficaram de fora deles os povos colonizados, as mulheres e as diversidades sexuais, as crianças, os loucos e, em geral, os não proprietários, bem como aqueles que nesses mesmos países falharam na competição para vender seu único bem: sua força de trabalho, ou seja, a vida.
Estamos falando sobre o nascimento da modernidade ocidental e sua expansão universalizante colonial. Com esse pacote veio um modelo de desenvolvimento tecnológico – que hoje está passando por uma nova revolução, equivalente ou talvez mais definidora do que foi a revolução industrial – e com ele veio a consideração da natureza, a mãe terra com todos os seus recursos e propriedades, como um recurso explorável.
O Ocidente construiu uma cultura matricida cuja metáfora mais recente é ter assassinado a democracia no país onde nasceu, a Grécia.
E ter feito isso financeiramente, por meio da dívida pública, é um símbolo crucial.
Mas voltemos ao presente. Enquanto milhões de pessoas morrem, adoecem ou afundam na precariedade, os degradados cultistas da “destruição criativa” inerente ao desenvolvimento capitalista celebram os incríveis lucros que para alguns produziram esta pandemia que ceifou milhões de vidas e mergulhou outros no desamparo.
De acordo com a OIT, cerca de 400 milhões de empregos foram perdidos globalmente, e os mais afetados foram as mulheres.
A perda na América Latina já era, no final de 2020, de 26 milhões de empregos.
Enquanto isso, a revista Forbes informou que foi um ano de lucros recordes para os mais ricos do mundo, com um aumento de riqueza de US$ 5 trilhões e um número sem precedentes de novos bilionários. Aqueles que, no entanto, ainda resistem a uma pequena perda desses ganhos monumentais para o bem do todo. A cúpula do meio ambiente também mostrou a ganância suicida dos países ricos, que, sendo os principais culpados da catástrofe climática e ambiental, tentam fazer com que os maiores sacrifícios recaiam sobre os países pobres e endividados para amortecer o aquecimento global.
Enquanto isso, a dívida dos países mais pobres está disparando, cuja sustentabilidade, segundo um documento do Banco Mundial, é difícil de avaliar e dificulta, nas palavras do Banco Mundial, “uma recuperação econômica duradoura”, embora a verdadeira preocupação seja que não haja informações confiáveis sobre se eles serão capazes de pagá-la.
Soma-se a isso o aumento astronômico do valor dos alimentos em todo o mundo, pressagiando um aumento da fome. O índice de preços da FAO disparou em setembro para seu nível mais alto em uma década, de acordo com dados divulgados na quinta-feira pela agência da ONU para assuntos agrícolas. O indicador, que replica o preço dos alimentos mais consumidos no mundo, subiu 1,2% em relação a agosto e quase 33% em relação ao mesmo mês do ano passado, quando a pandemia ainda grassava.
É claro que a pandemia e seu trágico desenvolvimento não são fruto do acaso, ou mesmo do chamado acaso culpável, mas do próprio curso da economia mundial hegemonizada pelas burguesias financeiras e sua capacidade de destruição necropolítica. Nada mais demonstra a gestão da crise sanitária nos países de vanguarda e em vários dos chamados países emergentes, confrontados com sistemas de saúde dominados pelo complexo médico, industrial e financeiro, que colocou o dispositivo biopolítico da saúde humana ao serviço da acumulação de capital e da concentração de lucros. E nada mais mostra a luta corporativa, de mercado e política que produziu uma distribuição desigual e suicida de vacinas.
Totalmente desmascarados, aqueles que clamavam pela democracia e pela república enquanto financiavam ditaduras, hoje começam a insultar a política e a tentar esvaziar processos democráticos efetivos usando a concentração das corporações midiáticas, as pressões econômicas, a justiça colocada a serviço de golpes suaves e, quando necessário, a violência mais crua. Vimos tudo isto acontecer com extrema velocidade nos nossos países. Há também o surgimento de correntes e movimentos abertamente de direita que, nas palavras do filósofo chinês Yuk Hui, “são fundamentalmente expressões de angústia pelo fato de que o Ocidente é incapaz de superar a atual fase da globalização, mantendo o privilégio de que desfrutou nos últimos séculos”.
No entanto, boas notícias: o século XXI começa a ser apontado como o da globalização dos protestos. Devo lembrar que em meu país, a Argentina, um levante popular culminou na década de reformas neoliberais mais dramáticas em 2001, iniciando uma década de desalavancagem dramaticamente revertida no retorno da proposta neoliberal extrema. A massividade do movimento de mulheres e os direitos das diversidades de gênero também alcançaram leis e mudanças que são instrumento de uma luta que continua, e celebremos que o feminismo latino-americano está criando redes de solidariedade com todas as lutas dos movimentos emancipatórios, ao contrário de outras correntes onde se constroem demandas excludentes.
Além disso, mais recentemente, os povos do Chile, Colômbia, Equador, Haiti, lideraram movimentos de protesto. A juventude chilena desferiu um duro golpe nas classes dominantes de um país que se mostrou o sucesso do neoliberalismo na região, o típico sucesso macroeconômico construído às custas das condições de vida e trabalho da grande maioria de seu povo. É por isso que aquele belo slogan que a juventude chilena mobilizada pegou: “Até que valha a pena viver”, nos toca profundamente.
Mas esses movimentos são assediados pela insidiosidade e manipulação promovida e financiada pelo império, que promove a fragmentação baseada em diferenças ou diversidades que mascaram a comunalidade do caminho no momento. Há até atores que, participando do discurso ou das demandas de alguns dos coletivos subalternos, o utilizam para gerar ruptura entre ou com outras forças, de modo que no final a luta se enfraquece e se privilegia a direita mais grosseira.
No acelerado reordenamento geopolítico global que se assemelha muito à guerra, é essencial, se quisermos evitar ser atacados, voltar a um caminho de ligação entre as nações, como o que uma vez conseguiu em 2015 – parece que há muito tempo – rejeitar a proposta da ALCA e institucionalizar a UNASUL, tão diferente em sua orientação da OEA que rapidamente aprovou golpes duros e suaves.
Não há dúvida de que precisamos de termos amplos de unidade de acção. A constituição orgânica de coalizões de forças sociais, sindicais e políticas cujo núcleo comum é a conquista e defesa de demandas por vida, prazer, trabalho e desdobramento de criatividade indispensável.
Coalizões sustentadas por corpos em movimento que lhe conferem materialidade e produzem novas linguagens, novas estéticas e novos significados. A América Latina é povoada por descendentes daqueles que sobreviveram a dores profundas, de povos nativos subjugados e abolidos, de milhões de escravos que cruzaram o mar acorrentados, como descreve o poeta cubano, daqueles que fogem das guerras, da fome, da perseguição e da pobreza. Mas também por causa dos herdeiros simbólicos dos conquistadores, que se olham na metrópole e construíram o imaginário de que somos o Ocidente. Esta comunidade de nações diversas, com raízes e dores comuns, deve lutar para não ser submetida ao destino que lhe foi atribuído por aqueles que defendem a acumulação indefinida: um espaço de expropriação e pilhagem.
Não podemos nos fragmentar internamente diante de tal risco. Já o fizeram conosco, por exemplo, quando o Paraguai ameaçou a hegemonia têxtil da Inglaterra, que promoveu a infame Guerra da Tríplice Aliança que esmagou esse crescimento. E eu poderia dar outros exemplos.
Assim como promoveram o confronto entre os países, agora o promovem dentro deles e até mesmo dentro dos movimentos emancipatórios.
NÃO vamos ceder a isso.
E aqui estamos, ALAMES, uma organização que se propõe a fazer parte dessa maré emancipatória no campo da saúde, ou seja, da vida.
Passamos por diferentes momentos, fomos incorporando discursos, atores e lutas, temos uma responsabilidade e um desafio pela frente, assim como a alegria de fazer parte de um coletivo que sobreviveu a décadas, inserido no pensamento e na gestão das ações em saúde, produzido academicamente e participado politicamente, sem depender de uma fonte de financiamento que estabeleça condições.
A ALAMES sempre foi uma tarefa militante, em defesa do direito à saúde e à vida. Bem-vindo, em nome dessa coordenação que assumiu sem saber que teríamos o evento mundial de saúde que marcará o século.
Bem-vindo às novas e necessárias gerações.