Uma concepção ativista de educação

ANTONIO GRAMSCI – UMA CONCEPÇÃO ATIVISTA DE EDUCAÇÃO E SUA (INTER)AÇÃO EM ITAIPAVA

Marco Aurélio Da Ros1, Rita de Cassia Gabrielli Souza Lima1, Davi Tames1, Lucrécia unelli2, Joelma Feliciano3, Liana Riveiro3, Marcos R.Rita3, Paula C. Souza3, Adriana G. Corrêa4, Camila  Labrêa4, Marina Goelzer Kieling4.

Resumo: Projeto de extensão universitária desenvolvido com estudantes de graduação em odontologia e medicina que busca através de uma concepção ativista de educação, o preparo teórico contra- hegemônico na área da saúde. Este projeto constitui-se com uma nova proposta de ação, pautado em diversas categorias apresentadas por Gramsci e na compreensão de que o processo saúde-doença é historicamente construído e permeado pela hegemonia da classe dominante. Tem como ponto fundamental conhecer os saberes da comunidade para fomentar os coletivos e construir uma proposta de interação que além de neutralizar as ações da ideologia burguesa dominante, que atualmente colocam em risco uma das maiores conquistas dos movimentos sociais na área da saúde, o Sistema Único de Saúde – SUS, construa premissas para outras ações contra-hegemônicas na busca de uma nova sociedade política.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde, Processo saúde-doença, Educação, Contra-hegemonia, Gramsci, Sistema Único de Saúde, Processo saúde-doença.

Área do Conhecimento: Ciências da Saúde.

Introdução

Este projeto: Antonio Gramsci – uma concepção ativista de educação e sua (inter)ação em Itaipava, é uma ação de Extensão da Universidade do Vale do Itajaí-UNIVALI, que teve início no primeiro semestre de 2015. Inicialmente houve a viabilização de 04 bolsistas do curso de odontologia além de 02 bolsistas do curso de medicina, cursos estes que institucionalmente estavam envolvidos no projeto.

Pautados em discussões de temas que perpassam a formação acadêmica na área da saúde e a prática dos futuros profissionais nas diversas áreas de atuação, visitamos conceitos desenvolvidos por Paulo Freire, Ludwik Fleck, George Rosen e Antonio Gramsci sob a ótica dos princípios e diretrizes que norteiam o SUS.

A proposta inicial deste projeto era promover um preparo teórico contra-hegemônico no setor da saúde e a posteriori inserção destes acadêmicos em uma ou mais comunidades do município de Itajaí, para em conjunto com a comunidade, desenvolverem ações alternativas às inúmeras práticas imbuídas da ideologia capitalista dominante na atualidade.

 

Metodologia

As discussões com os acadêmicos iniciaram pelo tema: a universidade que temos e a que queremos. A partir deste ponto e considerando que a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como domínio e como direção intelectual e moral1, discutimos a formação hegemônica do setor de saúde no Brasil, o modelo biomédico, o complexo médico-industrial e as dificuldades criadas para a sobrevivência do SUS.

A partir disto, foi necessário contextualizar historicamente o conceito de saúde baseado na determinação social do processo saúde-doença. Ao considerar a determinação social2, é necessário conceber as relações social-biológico e sociedade-natureza, de forma tal que nenhuma delas esteja ausente nesta determinação, considerada como um processo, um modo de definir.

Concomitante a isto, abordamos aspectos do movimento da medicina social europeia do século XIX, seu percurso na América Latina até chegar ao conceito de saúde gerado a partir do Movimento da Reforma Sanitária e utilizado na 8ª Conferência Nacional de Saúde3: […] a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. Sendo assim, é principalmente resultado das formas de organização social, de produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida3.

Em função das resistências epistemológicas criadas durante a formação dos acadêmicos, uma ação promovida pela hegemonia4, é que “não é apenas política, mas é também um fato cultural, moral, de concepção do mundo”, tivemos que discutir epistemologia fleckiana. Sendo necessário caracterizar os Estilos de Pensamento que perpassavam o processo saúde/doença, muito difundidos e defendidos pelo modo de pensar da classe dominante.

O Estilo de Pensamento5, 6, traz as concepções de entendimento do processo saúde-doença que legitimam e reforçam as práticas e as soluções para a resolução das questões vinculadas à saúde, caracterizando o conhecimento de uma época a partir das suas atividades sociais e interações com a natureza.

Após aparente compreensão passamos a discutir educação em saúde e os conceitos freireanos de educação horizontal, foi somente neste momento (segundo semestre de 2015) que conhecemos o vice-presidente do Conselho Municipal de Saúde do município de Itajaí, o Beto. O município de Itajaí é destaque no estado de Santa Catarina, possui o maior PIB e a maior renda per capita do estado, mais de 200.000 habitantes e um Conselho Municipal de Saúde combativo e de oposição à atual gestão.

            O vice-presidente Beto, veio ao grupo de extensão apresentar a realidade de um bairro distante do centro aproximadamente 06 km, o bairro Itaipava. Além da distância, o bairro é separado do restante da cidade por uma estrada federal (a BR 101), sendo também cortado por uma rodovia estadual. Itaipava foi a primeira colônia de Itajaí, fundada em 1820 muito antes da emancipação do município, ocorrida em 1860.

O bairro de Itaipava tem em torno de 10.000 habitantes, dispõe de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) com 03 equipes, insuficiência de equipamentos públicos e uma organização popular diferenciada do restante do município. Itaipava durante muitos anos foi o único bairro de Itajaí a contar com um Conselho Local de Saúde, participando ativamente de movimentos em defesa do SUS. Mediante estas características, Itaipava passou a ser o local preferencial onde queríamos iniciar o nosso trabalho.

O segundo semestre letivo da universidade iniciou e com ele vieram as modificações dos bolsistas que faziam parte do projeto. Os alunos do curso de medicina abandonaram o projeto, já dos 04 bolsistas do curso de odontologia, 01 seguiu no projeto sendo acompanhado por 03 novos bolsistas deste curso.

A saída dos bolsistas se deu em decorrência da dinâmica de distribuição das disciplinas nos cursos de medicina e odontologia. As turmas de medicina a partir do segundo semestre, não dispõem de carga horária livre para projetos de extensão universitária, fato que também ocorre no curso de odontologia a partir do quinto semestre. No entanto, o curso de odontologia até o quinto semestre conta com uma grade curricular que alterna a oferta das disciplinas em períodos diferentes, fato que também impediu a continuidade dos alunos no projeto. Tivemos uma exceção porque um dos alunos que iniciou com o projeto no primeiro semestre, não cursou todas as disciplinas oferecidas pelo curso, no segundo semestre.

Além destes alunos (vagas institucionalmente constituídas), o projeto contou com alunos voluntários do curso de graduação de psicologia, história e do mestrado em Saúde e Gestão do Trabalho, presentes desde o primeiro semestre de 2015.

Os novos participantes do projeto fizeram com que retomássemos as discussões ocorridas nos primeiros encontros (de forma resumida), continuando o que havíamos realizado no primeiro semestre e dando início as discussões de Gramsci: quem era, sua história, sua luta. Estudamos também, algumas de suas categorias: hegemonia, intelectual orgânico, vontade coletiva, democracia e subalternidade, construindo a base do projeto pautados na perspectiva de questionar o que está posto, reorientando as percepções a respeito de processos históricos que geram os problemas de saúde. Com este movimento exercíamos uma suave coerção na busca7 de instrumentos para uma nova forma ético-política de construção de saberes e de estar em sociedade1.

 

Resultados Preliminares

Com a compreensão (limitada) de que os bolsistas, em sua grande maioria novos integrantes do projeto, não estavam preparados ainda para trabalhar em conjunto com a população, fomentando uma concepção ativista de educação, algumas apresentações acadêmicas em eventos internos da universidade foram organizadas.

            Nestas apresentações, os bolsistas puderam aperfeiçoar a habilidade de promover oficinas, ampliando a compreensão a respeito de aspectos relacionados à participação e sociedade. Esta proposta também aproximou os bolsistas de outras categorias gramscianas: hegemonia e contra-hegemonia, democracia participativa e democracia representativa, intelectual orgânico, bloco histórico, vontade coletiva, concepção de estado e sociedade civil8, 9, 10, 11.

Terminamos o segundo semestre e as reflexões dos professores envolvidos (Marco, Rita e Davi) levaram ao entendimento que estávamos sendo contraditórios com o que defendíamos e que se esperássemos que os alunos estivessem “prontos”, jamais iríamos à comunidade.

Esta forma de agir negava a própria concepção do projeto, que o novo saber é construído enquanto processo, apresentando-se como um movimento constante de diálogo e leitura crítica da realidade.

Com o início de 2016 fizemos contato com o Beto para lhe dizer que queríamos iniciar o trabalho em Itaipava e solicitamos o que esperavam de nós. Sua resposta instantaneamente foi: colaborar com a organização da população, colaborar na resolução de problemas do bairro. Nesta ocasião, também nos disse que havia feito um concurso na prefeitura e que tinha sido aprovado para a função de Agente Comunitário de Saúde (ACS) no bairro Itaipava.

Na sequência agendamos uma visita à Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro, havíamos decidido iniciar o trabalho em conjunto com os ACSs. Concomitante a esta decisão, também instituímos que o terceiro semestre do projeto contaria com três encontros teóricos com os bolsistas para prepará-los a respeitos de temas específicos: conferência de saúde, parcerias e possibilidades de atuação com os ACSs.

A proposta de intervenção não seria em uma área específica da saúde, mas tentaríamos através do contato com pessoas chaves da comunidade, colaborar com o que nos fora solicitado. Ao conhecer a realidade do bairro e a sua história através dos idosos e demais moradores, fomentaríamos os coletivos (de lazer aos de luta), construindo no processo nossa proposta de (inter)ação em Itaipava. Adotaríamos o método freireano de ação, reflexão e teoria12 onde, “(…) nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão de mundo, ou tentar impô-la, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa” visando, com isto, uma nova construção teórica e uma nova práxis, um novo “atuar sobre sua realidade”.

Em nossa primeira visita encontramos os ACSs das três equipes que compõem a UBS do bairro, dois enfermeiros e a coordenadora da unidade, após as apresentações convencionais dissemos o que pretendíamos: aprender com eles e tentar colaborar com a organização da população rumo à construção da autonomia e emancipação, fomentando os coletivos, reforçando o Conselho Local de Saúde e colaborando na construção da Conferência Local de Saúde.

Após ouvir a nossa demanda, nos apresentaram o território de Itaipava indicando uma série de problemas que vivenciam: falta de orçamento participativo, inexistência de serviço de urgência e emergência, carência de instrumentos públicos de cultura, lazer, praças, ausências calçamentos na maioria das vias públicas, falta de área coberta para prática de esportes e de segurança no período das 19 às 07 horas e a perspectiva do bairro separar-se do município.

Além destes aspectos a interrupção da tradicional Festa dos Colonos que acontecia no bairro e a ausência de plano de cargos e salários dos funcionários públicos, também foi destaque nesta conversa inicial. Outrossim, pudemos conhecer um pouco mais sobre o trabalho dos ACSs e o vínculo afetivo que eles mantinham com a comunidade demonstrado através das seguintes falas: “conta para o ACS o que não conta para o marido”, “vamos até nos velórios de nossos visitados quando morrem”, “frustração de não ajudar a resolver”, “mas as vezes resolvemos ouvindo”, “somos uma referência de carinho”, “ as vezes eles pensam que a UBS não é SUS”, “o SUS é ruim, mas as equipes da UBS são boas” (SIC).

Para a próxima reunião combinamos que todos apresentariam propostas de atuação conjunta e possíveis parcerias que poderiam ser estabelecidas.

Na data combinada, já no início da reunião os ACSs nos falaram da existência de um grupo de idosos que estava reunido naquele momento em um local próximo. Fomos convidados a conhecê-lo e algumas outras importantes informações nos foram repassadas durante este repentino convite. Ficamos sabendo da existência de um Museu Etno-Arqueológico na comunidade e das 14 olarias (poluentes) que eram fonte de inúmeras reclamações. A presença de uma Associação Pró-emancipação de Itaipava e a consciência de que o SUS precisaria ser muito defendido em função dos ataques que o nosso atual governo (até então interino) golpista estava fazendo, com intuito de acabar com o sistema público universal de saúde, também mereceram destaques.

Algumas outras ações desenvolvidas de forma isolada no bairro também foram relatadas: um projeto de minhocário desenvolvido na escola, um grupo chamado: Vida Saudável de responsabilidade da UBS, mas que acontecia no espaço físico do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e que mobilizava inúmeras mulheres da comunidade, enfim várias ações aconteciam em Itaipava, porém sem uma linha condutora comum, pelo menos visível para nós até aquele momento.

Deixamos para combinar a tão esperada proposta de parceria com os ACSs para uma próxima reunião, no entanto, várias possibilidades nos intrigavam e desafiavam. Sabíamos que a forma de entender tudo aquilo que tivemos contato no Grupo de Idosos, determinaria a organização das ações futuras do projeto. Forma de entendimento esta, fundamental para a instituição de coletivos de luta (e de lazer), fontes das ações contra-hegemônicas, preciosamente apontadas por Gramsci em seus escritos e objeto deste projeto em desenvolvimento.

 

Coincidências? Vontade política? Ou somando forças pode acontecer.

Grupo de Idosos: Fomos ao salão paroquial da igreja, enquanto esperávamos a organização dos idosos que estavam em uma das salas, os extensionistas, em um exercício espontâneo, realizaram uma tentativa de diálogo, não só com as pessoas que estavam no salão, mas principalmente com o coveiro do cemitério que ficava ao lado do salão paroquial e de uma olaria. Ou seja, os estudantes para além do acumulado em um ano de teoria, começaram naquele momento, a exercitar uma relação horizontal.

O grupo dos estudantes ao entrar na sala espalhou-se, mesclando-se com umas vinte senhoras que estavam bordando, cada extensionista ficou com 02 ou 03 idosos. O grupo foi muito acolhedor e a integração deu-se naturalmente.

Soubemos que este grupo de aproximadamente 20 pessoas, era parte de um grupo maior, umas 40 pessoas com mais de sessenta anos que se reuniam nas quintas-feiras.

Na reunião seguinte, realizada para avaliarmos as ações, a história deste grupo foi contada pela coordenadora Suzana, funcionária do Centro de Convivência de Idosos, da prefeitura municipal de Itajaí. A síntese é aproximadamente a seguinte: o grupo tinha mais de 10 anos, era muito alegre e até um ano atrás fazia bailes e viagens. O grupo possuía uma escassa autonomia, era dependente de Suzana e Aline (confiavam muito nelas), as idosas trabalhavam exclusivamente com bordados, artesanatos de pano e tricô. Não havia um projeto coletivo, tinham saudades das viagens, das festas, dos bailes em que iam, onde no caminho, comiam a “linguiça da Maroca”.  Algumas fotos que estavam no celular da mais idosa do grupo, vó do médico de família da unidade básica de saúde, foram mostradas, nestas ela estava vestida de homem e havia dançado com outras idosas no último baile (em 2015).

Sem recursos da prefeitura para a compra de materiais para o artesanato, contratação de ônibus para os passeios e até mesmo para o café da tarde, parecia nítido o pedido de socorro, mas também estes fatos expressavam a falta de reação do grupo, caracterizando a subalternidade do grupo com ênfase na ausência de articulação em torno de um projeto comum1.

 Em 2016 nenhuma viagem tinha sido realizada e o ônibus estava proibido de circular, a crise do país chegava à prefeitura, repercutia nas mudanças impostas ao Grupo de Idosos, “[…] a perspectiva de políticas de perda de direitos, o que geraria um crescendo de mobilizações sociais e uma escalada da repressão, levando a polarização social e política a outros níveis”13.

Soubemos também que nas quintas-feiras os homens (de 4 a 6) se reuniam numa sala ao lado, onde ficam jogando cartas até a hora do lanche. Em conversa (em separado) com eles, relataram que gostavam também de jogar bocha, mas que as canchas que existiam na comunidade não funcionavam mais e, que não se sentiam a vontade de ficar no mesmo salão onde as idosas faziam os bordados. Então, quando terminava o lanche, iam embora. 

Histórias de vida, solidão e subalternidade. O que fazer? No subtítulo final: Projetos de autonomia, caminhada para emancipação retomaremos este grupo juntamente com a teia de projetos entrelaçados.

Conselho Local de Saúde: o presidente deste conselho, que também é o vice-presidente do Conselho Municipal de Saúde (e que desde 2016 é um ACS da comunidade) o Beto, nos convidou para participar de uma de suas reuniões que aconteciam nas segundas-feiras. Somente 02 professores foram e quando chegamos, a reunião já havia começado. Os 02 enfermeiros, 01 ACS e 03 pessoas da comunidade estavam discutindo a questão das olarias (esta questão assumirá uma centralidade inesperada no projeto).

Quando chegamos o grupo fez uma pausa para nos localizar em suas discussões, relataram que as 14 olarias empregavam em torno de 200 pessoas. Os fornos ficavam ligados 24 horas por dia e eram alimentados por lascas (cepilhos) de pinus eliottis, portanto as chaminés produziam fumaça 24 horas por dia. A principal queixa, no entanto, era em relação ao barro usado na confecção das telhas e tijolos pelas olarias. Os caminhões que circulavam pelas ruas, com as cargas de barro, não tinham proteção e a cada solavanco, uma porção de terra caia nas ruas e ali acabava secando e virando poeira. Além disto, a cada despejar de carga nos depósitos, nuvens de poeira se espalhavam pelas proximidades.

Uma senhora presente na reunião disse que em 29 anos nunca pode abrir as janelas da frente de sua casa, uma vez quando tentou, ficou com camadas de poeira sobre as roupas, móveis e lençóis. Já era a terceira vez que discutiam o tema na reunião (digno de nota é que não era a causa/ação de doenças que movia a discussão), isto demonstrava uma contradição importante que, possibilitaria uma melhor compreensão do real, enquanto uma situação provisória e superável1. Sendo nosso principal desafio, fazer emergir desta contradição (frequente na história de Itaipava) ações contra-hegemônicas que buscassem uma nova sociedade política.

Os moradores não se dispunham a fazer nenhum movimento direto contra as olarias: nem abaixo assinado, nem povo na rua. Achavam que a FAMAI (Fundação Municipal do Meio Ambiente de Itajaí) é quem deveria tomar as providências, motivo pelo qual haviam, em uma reunião anterior encaminhado um pedido de fiscalização e estavam aguardando o parecer. O que aparecia na verdade é que as olarias existiam antes do bairro, aliás, elas foram a origem do bairro. Os proprietários eram parentes dos moradores e os 200 operários eram moradores do bairro.

Soubemos durante a reunião que eventualmente os proprietários das olarias se reuniam (esta reunião era chamada de feirino), para em conjunto, estabelecerem os preços dos produtos a serem vendidos por cada uma das olarias. Ainda durante a reunião do Conselho Local também foram discutidos problemas de saúde dos trabalhadores da comunidade, falaram do caso de um foguista que trabalhava sozinho durante a noite inteira alimentando o fogo com os cepilhos, e com isto garantia o forno permanentemente quente. Ele era usuário constante da UBS, ia para conversar (aliviar a solidão, dizia ele).

Após combinarem que fariam pressão na FAMAI, passaram para outro assunto, a falta de atendimento para problemas de doença à noite na comunidade. Relatavam que grande parte da fila do Hospital Pequeno Anjo (localizado a aproximadamente 12 km do local) era de pessoas do bairro, trabalhadores/as que levavam seus filhos ao atendimento quando voltam do seu trabalho porque a UBS da comunidade não estava mais funcionando naquele horário. A questão era, porque não havia atendimento noturno na UBS de Itaipava? Uma das propostas sugeridas foi a de realizar uma grande mobilização comunitária na Conferência Local de Saúde a ser feita até o final do ano.

CRAS: o Centro de Referência da Assistência Social funcionava em uma casa de 100m², localizado em uma área de 30m de frente por 200m de fundo, contava ainda com um anexo de 8mx8m que era uma sala de reuniões, entre estas duas construções havia uma horta. Léo (psicólogo, chefe do CRAS) nos recebeu amistosamente, colocou-se à disposição para fazer trabalhos integrados e parcerias, relatou que já cedia a sala (o anexo) para reuniões de grupo da UBS.

O CRAS dispunha de um cadastro com as lideranças do bairro que também foi colocado a nossa disposição. O chefe do CRAS relatou a vontade de fazer mais coisas pelo bairro, porém destacou a impossibilidade existente devido à falta de pessoal, sua equipe tinha 50% dos funcionários necessários. Destacou que no bairro havia muitos casamentos consangüíneos. Marcamos uma nova visita.

Museu Etno-Arqueológico: utilizava o espaço de uma antiga estação ferroviária, entre as atividades promovidas pelo museu, estavam cursos de técnico ceramista.

No início do nosso projeto o museu passava por uma crise na sua direção, já no segundo momento, o atual, a nova direção se propunha a resgatar a história da comunidade, realizar exposições de fotografias antigas da comunidade, das olarias entre outras.

A nova administração, em uma tentativa de integrar as escolas da comunidade com o museu, as convidou para fazerem uma exposição de fotos do bairro tiradas pelos próprios alunos. Esta exposição teve uma ampla divulgação nos jornais e na mídia televisionada da cidade.

Encontro de Saúde e Ambiente: promovido pela professora Márcia do curso de Engenharia Ambiental da UNIVALI, o encontro foi realizado durante uma tarde e uma noite. Neste momento fomos apresentados à Associação Agroecológica das Mulheres de Itaipava, fomos convidados para palestrar com a temática: Saúde e Meio Ambiente. A conexão com este grupo nos parecia evidente, desta maneira procuramos essa associação ainda durante o encontro.

 As integrantes da associação ali presentes apresentaram muito interesse na integração com o nosso trabalho, levantaram a possibilidade de trabalhar com o Grupo de idosos e relataram a parceria que elas têm com as olarias. As olarias forneciam à associação o barro para os canteiros e os cepilhos que protegiam o que é cultivado, evitando a evaporação da água.

Este exemplo de parceria com as olarias, sinalizado pelas mulheres da associação, veio à baila novamente devido a participação de uma nova estudante no projeto. Ela era uma ex-moradora do bairro que há 04 anos havia participado como professora dos cursos de ceramistas (desenvolvidos no museu). Esta extensionista, que havia formado no bairro Itaipava jovens como técnicos ceramistas, parecia estar novamente disposta a ensinar essas técnicas tanto para jovens nas escolas, quanto para o Grupo de Idosos. O problema que se colocava era a secagem dos produtos, para isso a parceria com as olarias, surgia como uma solução.

Minhocário: as conversas começavam a se entrelaçar, o tema minhocário havia surgido na Associação Agroecológica e por informações da técnica ceramista (a extensionista), ficamos sabendo que um trabalho feito em uma escola do bairro, que há uns três anos atrás, desenvolveu um projeto de compostagem. No projeto de compostagem era aproveitamento o lixo orgânico das escolas e a utilização de minhocas colaborava para a fertilização e transformação da terra, em terra fértil.

Nos contatos com o pessoal da UBS, ficamos sabendo que a enfermeira Julita tinha feito um curso de como fazer a compostagem e estava disposta a retomar o trabalho com as escolas.

No bairro de Itaipava estava localizada também a EPAGRI (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina) que desenvolvia experiências de técnicas agrícolas e que tinha a possibilidade de fornecer as minhocas e as mudas.

UNIVALI: o que surge de novo é que a Vice-reitoria de extensão da UNIVALI, cumprindo determinação ministerial, enfatizou durante o período de formação continuada dos professores da instituição que, a partir de julho de 2016, todos os cursos precisariam disponibilizar 10% de sua carga horária para cursos de extensão.

Soubemos pelos nossos extensionistas (engajados também em políticas estudantis) que a Vice-reitoria de extensão havia “desafiado” o DCE (Diretório Central de Estudantes) a elaborar um projeto de extensão. Em função do Projeto Antonio Gramsci ser claramente identificado como contra-hegemônico, a direção do DCE nos procurou (possivelmente) por entender que uma parceria pudesse render bons frutos.

ACSs: em nosso trabalho de reflexão nos demos conta que a primeira aproximação feita com os ACSs havia sido de forma vertical, com isto alguns ACSs não se sentiram à vontade para trabalhar junto com os nossos extensionistas.

Isto ocorreu especialmente em função da proposta ter sido elaborada pelo Beto e pelos professores da UNIVALI, uma proposta que visava organizar melhor o Conselho Local de Saúde e promover uma Conferência Local de Saúde até o final do ano. Os ACSs entendiam que isto fugia um pouco das funções dos ACSs, nós não entendíamos assim, mas não tínhamos o direito de exercer coação nos ACSs. Propusemos então que trabalhassem conosco aqueles que se identificavam com a proposta, isso significou a adesão de todos os agentes que trabalhavam em uma equipe (os 05 ACSs da enfermeira Julita), dois da enfermeira Roberta (o Beto e mais um) e nenhum da outra equipe.

 

Projetos de autonomia, caminhada para emancipação.

Havia um universo de possibilidades postas na comunidade e desarticuladas, priorizamos o contato com as mulheres da Associação Agroecológica e com o Grupo de Idosos.  Esta opção nos parecia, além de uma possibilidade de intercâmbio entre grupos da comunidade, que poderiam de certa forma ser estimulados a terem uma representação no Conselho Local de Saúde, uma possibilidade, porque não dizer, de promoção de saúde. Partíamos de um conceito de promoção de saúde, conforme a definição construída e defendida na Carta de Ottawa14 “[…] processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo maior participação no controle desse processo”.

O CRAS aparecia como uma alternativa tanto de organização, como de disponibilidade de espaço físico para uma horta comunitária (aliás, discutimos essa possibilidade quando fizemos nossa segunda visita ao Léo, que disse estar pensando em fazer justamente isso e que “juntaríamos a fome com a vontade de comer”). Além disto, também pensamos que a cancha de bocha (solicitadas pelos homens do Grupo de Idosos) teria seu espaço no CRAS.

Começava a se delinear a possibilidade de um projeto que incluísse vários atores sociais e que caminhasse para a “independência” do Grupo de Idosos junto com outros grupos da comunidade.

Projeto 1: o Grupo de Idosos – além da possível participação de representantes no Conselho Local de Saúde, este projeto buscava colaborar com a autonomia do grupo. Estava baseado na possibilidade de parceria com o Grupo de Mulheres Agroecológicas para trabalhar com horta comunitária (árvores frutíferas e horto medicinal), a princípio no CRAS, além disto poderia desenvolver um curso de cerâmica, com a intencionalidade de construir vasos para hortas de janela.  

Pensávamos também que a EPAGRI poderia contribuir com as mudas de plantas, especialmente de bananeiras (estavam fazendo pesquisas justamente sobre elas). Essas plantas poderiam ser fertilizadas pelo minhocário das escolas, as olarias forneceriam o barro (para serem plantadas), os cepilhos (para evitar a evaporação da água) e forno (para secagem dos vasos cerâmicos).

A ideia do projeto pressupõe uma organização do Grupo de Idosos reforçando a autonomia e através das parcerias desenvolvendo condições para voltar a fazer viagens, bailes e outras opções de lazer. Com isto, as concepções dominantes que até então se apresentam como alternativas únicas9 serão superadas, permitindo a criação ou o restabelecimento de espaços para o exercício da cidadania.

Projeto 2: em parceria com os ACSs (ao todo 7 se interessaram) iniciaríamos através das visitas domiciliares, a ampliação do conhecimento a respeito da comunidade, fortaleceríamos os vínculos e através da lista do CRAS, localizaríamos   as lideranças da comunidade para convidá-las para as reuniões do Conselho Local de Saúde.

A pauta das reuniões do Conselho Local de Saúde estaria inicialmente vinculada à formação histórico política do grupo e especialmente voltada para a resistência e o enfrentamento da ameaça forte do atual governo (golpista) às políticas sociais. Dentre elas, especialmente a do SUS, fortemente golpeado pelo atual ministro da saúde. Entendíamos que uma das formas de resistência seria a retomada da consciência sanitária que pautou o Movimento da Reforma Sanitária nos anos 70 e 8015,16. Este movimento foi defendido por um conjunto de atores sociais entre os quais o CEBES (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) que assumiu o papel de intelectual orgânico em associação com luta popular. O CEBES enquanto intelectual orgânico cumpriu a função de expandir os direitos, eliminar os embustes, desvelando as contradições da sociedade e socializando o poder, impulsionando a sociedade como um todo, não somente uma parte1,9,10.

Nossa ideia era retomar essa luta resistindo e avançando, entendemos também que a pauta local não poderia ser deixada de lado. Isto envolvia a atenção noturna à problemas de doença da comunidade e o que faríamos com a nossa contradição local: as olarias.

A parceria para esta luta com o movimento comunitário, que envolvia a UBS e a UNIVALI, especialmente o CCS (Centro de Ciências da Saúde), nos motivava a reorganizar em Itaipava uma das sustentações do movimento sanitário no sul do país “o trabalho conjunto com as comunidades de base”17. 

Nosso conceito de saúde, entendido como determinado pelo modo de produção e como este atua na formação social especifica, nos orienta para que a partir desta compreensão, possamos desenvolver atitudes coerentes com o conceito. Isto redunda na possibilidade de promover saúde e de colaborar no desenvolvimento da capacidade de reagir a uma situação que oprime18.

Quando tínhamos a expectativa de que este trabalho, que seria apresentado no Congresso da ALAMES pudesse ter seu texto publicado por inteiro, estávamos encerrando esta escrita no parágrafo anterior. Estávamos, portanto em meio ao processo que não tinha ainda resultados mensuráveis, mas saímos da situação estática que o golpe causou às consciências brasileiras, para desencadear movimento, tanto no reforço da autonomia, da caminhada para a emancipação, como o específico da nossa área: a defesa do SUS.

Vale ressaltar que todo esse processo nasce de uma vontade política de oportunizar espaços para o projeto de extensão, do esforço em viabilizar intelectuais orgânicos, mas principalmente a partir dos ACSs, que possibilitaram a articulação dos diversos grupos que existiam na comunidade Itaipava.

Os dois projetos tinham como pano de fundo: um projeto de futuro, de luta, de solidariedade, de construção de autonomia, de promoção de saúde, de defesa do SUS, do controle social, do reforço a cidadania e da caminhada para a emancipação.

Através destes projetos desejamos, assim como Gramsci, transformar o sujeito passivo “em sujeito ativo e socializado capaz de tomar iniciativa e se impor com um projeto próprio de sociedade”19,20.

Quando soubemos que não haveria a publicação automática dos textos que seriam apresentados no congresso da ALAMES, podemos alongar um pouco mais o tempo para poder acompanhar o processo.

Como se encaminharam os projetos: a semana passada (de 12 a 16 de setembro) as coisas tomaram um rumo surpreendentemente positivo. Integrou-se ao projeto no dia 12 o DCE, que estava disposto a fazer parceria e trabalhar na comunidade. Os convidamos para uma reunião marcada para o dia 15 no salão paroquial da Igreja, onde o grupo de idosos se reuniria.

Articulamos anteriormente que o CRAS encarregar-se-ia dos convites para a EPAGRI e para a Secretaria de Agricultura, além disto garantiria o espaço na reunião com o Grupo de Idosos; já o nosso projeto convidaria o outro projeto (o das Mulheres Agroecológicas), o DCE e a UBS.

A reunião aconteceu, houve falas da coordenadora do Grupo de Idosos dizendo: “não acreditar que aquilo pudesse estar acontecendo”; do CRAS expressando que estava encantado com uma possibilidade de trabalho em parceria e que isto seria a retomada dos objetivos primeiros de um CRAS; e da coordenação de ambos projetos da UNIVALI.

Após uma discussão ampla, ficou estabelecido que uma comissão se encarregaria de escrever o projeto (necessidade formal para o CRAS e para o DCE), composta por representantes do CRAS, DCE, Grupo de Idosos e UBS. No caso especifico da UBS, a representação seria realizada pela enfermeira Julita, ela além de retomar o projeto do minhocário nas escolas, era membro do Conselho Local de Saúde e coordenava uma das áreas de atuação da UBS, que estabeleceu uma parceria entre 05 ACSs que atuavam nesta área e o Projeto Antonio Gramsci.

Importante ressaltar que dessa maneira, o Projeto Antonio Gramsci cortava o “perigoso cordão umbilical” de dependência que poderia estar sendo construído.

Desta maneira, ficamos com a clareza de que estávamos realmente fomentando uma concepção ativista da educação e poderíamos voltar a nos dedicar ao Projeto 2.

 

“Mi Sono Convinto Che Anche Quando Tutto Sembra Perduto Bisogna Mettersi Tranquillamente All’opera Ricominciando Dall’inizio” – Lettera Dal Carcere Di Antonio Gramsci Al Fratello Carlo Del 12 Settembre 1927. (Antonio Gramsci)

“Sono Pessimista Con La Mia Intelligenza, Ma Ottimista Per La Volonta”. (Antonio Gramsci)

 

Referências

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  2. Breilh J. Los três “S”de la determinación de la vida. In: Nogueira RP, organizador. Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: Cebes; 2010.
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